Sonhos Platônicos

sábado, abril 29, 2006

Festa de Aniversário Parte I


Olhou pela janela entreaberta e lá fora viu o céu azul, límpido, sem nuvens e pela primeira vez ousou imaginar viver algo além daquilo que conhecia. Aquela era a única entrada para a luz (vida?) do mundo e o contraste entre essa luz e a escuridão que banhava o quarto onde estava era um retrato perfeito daquilo em que se resumia sua vida: Fora sempre personagem secundária, nunca assumira qualquer papel significativo, sendo obrigada a tornar-se espectadora de sua própria história. A felicidade a que assistia pela janela permanecera sempre lá fora e a luz do dia não fazia parte da sua realidade.

Era seu aniversário e essa data lhe enchia de desânimo. Estava sozinha e, como sempre, era assim que comemoraria o dia de seu nascimento. Um misto de tristeza, desesperança e revolta tomava-lhe conta, mas nada conseguia fazer que pudesse amenizar-lhe um pouco a dor de sentir-se esquecida. Sentada na beira da cama, baixou os olhos em direção às mãos estendidas sobre as pernas e o que sentiu quando as viu ali sozinhas, calejadas pela falta de carinho, atingiu-lhe o peito com uma forte estocada: Nunca tivera outras mãos nas suas. Na sua cabeça, nunca houvera a necessidade, sempre convivera bem com a solidão, mas agora o coração lhe cobrava os anos de indiferença de uma só vez. Pela primeira vez percebeu-se só, suas mãos vazias lhe mostravam isso e, sem entender direito o que acontecia, sentiu no rosto o calor úmido das lágrimas que a muito vinham sendo guardadas, esperando aquele momento para se libertarem de sua prisão de esquecimento.

Não conseguiu se controlar. As mãos tremiam. Os lábios tremiam. O corpo inteiro tremia, num desespero insano de furacões. Não teve mais pudor. Não queria mais guardar para si aquilo que a tantos anos atormentava-lhe a alma. Chorou. Chorou lágrimas que ser humano algum jamais havia chorado e a dor contida nelas era tão grande, que o mundo inteiro se enterneceu. O sol escondeu sua dor atrás de nuvens acinzentadas de chuva, o céu escureceu-se e derramou seu pranto na forma de grossas lágrimas de tempestade. A calamidade se espalhou por toda a terra.

As pessoas ignoram que o maior alimento para as tristezas do mundo é a indiferença. É preciso dizer que se ama. Mostrar que se ama. Provar que se ama. Nossos sentimentos de apreço nunca devem ficar guardados dentro de nós, porque nunca sabemos quando e o quanto alguém que amamos precisa receber isso de nós. Somos seres deficientes, necessitados de atenção. As maiores calamidades de nossa história são causadas por corações partidos.

Não é necessário muito para se curar um coração que chora. Um gesto simples pode dar conta do recado. No caso desse coração que estamos a conhecer, a cura poderia vir por meio de um simples telefonema, por exemplo. Um telefonema de alguém inserido na história de forma deliberada e repentina, especialmente criado para essa função. Como quem conta tem sempre o direito e o poder para mudar a sorte dos personagens quando bem lhe entender, reservo-me a vontade de mudar a história de forma sutil e no entanto decisiva, sob o pretexto acredito incondenável de se trazer um pouco de preenchimento a uma vida que se encontra vazia. Se é o amor o melhor remédio, quero usar o meu poder de criador para receitar e aplicar nessa pobre alma preta-e-branca, uma dose que a pinte de arco-íris. Sendo assim:

O telefone tocou. Ela parou. Achou estranho. Isso não acontecia com freqüência. O aparelho era uma simples peça de decoração sobre o criado mudo do quarto. Pensou em não atender. Seria mais um engano ou talvez alguém tentando lhe vender algo. Cansara-se de ter ilusões com relação às pessoas que conhecia. Todas tinham seu número, mas nunca ninguém havia perdido alguns segundos do seu tempo com ela. O toque era insistente. Uma força estranha a fez levantar-se, ir até o aparelho e tirá-lo do gancho. Do outro lado da linha, de algum ponto distante o suficiente onde sua imaginação não conseguisse alcançar, uma voz masculina perguntou quem era. Ela respondeu hesitante e a voz pediu-lhe um segundo. Sua curiosidade daria até mesmo dois.

Um clique.

Um coro de vozes celestiais inundou o fone.

“Parabéns pra você...”

A canção lhe era conhecida apenas pela televisão e pelas vezes em que a tinha ouvido sendo cantada por vozes nos apartamentos vizinhos, quando inconscientemente sonhava com o dia em que seria seu nome aquele chamado ao final, acompanhado de palmas e risos de alegria.

Seu peito foi tomado por um sentimento dominador, sufocante, que crescia e parecia prestes a explodir. Suas lágrimas que só conheciam a existência por meio da tristeza secaram e os lábios crisparam-se de um modo que não faziam a muito tempo. Um sorriso. Seus olhos brilharam e a luz que deles se lançou, iluminou todo o quarto, banhando o preto-e-branco de cores impossíveis.

Não sabia, mas a felicidade lutava bravamente na difícil tarefa de instalar-se no desconhecido mundo que era aquele jovem coração ressequido, dando vida a seu espirito atrofiado. Sem perceber, cantou para si mesma as “muitas felicidades” e os “muitos anos de vida” da canção, num tom de voz até aquele dia desconhecido de ouvidos humanos.

O sol saiu.

Crianças brincavam na rua. Risos alegres ecoaram pelo mundo, entrando com ares de renovação pela janela entreaberta do quarto.

Mais um coração descobrira o doce sabor da felicidade.



ps.: Tô cada vez mais feliz pelo número de pessoas diferentes que têm entrado no blog e comentado os textos... Muito obrigado mesmo gente..
Abraços!!