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A borracha arrasta-se pelo asfalto num guincho ensurdecedor: Gritos de surpresa, um baque surdo do metal contra algo pesado, um gemido de dor. Não demora e o ar se enche de um odor característico, conhecido. Borracha queimada. Silêncio. Imperceptível, ele ouve um arrastar-se, seguido de ruídos de esforço. A mão que lhe agarrava o braço, e que naquele momento o aperta como se fosse ele segurança, puxa-o para mais perto, para que a voz lhe alcance mais rapidamente os ouvidos. A urgência rouba das palavras o sentido, e ele demora a entender o que na verdade adivinhara sozinho: Ali perto, talvez a poucos passos, uma vida terminava.
Ele não podia ver. Preso estava em um mundo de escuridão e, no entanto, sentia-se livre. Esse era seu mundo, o mundo que Deus lhe reservara e nele se sentia em casa. As pessoas passavam apressadas, esbarravam em seu corpo como se não notassem sua presença. Não era naquele momento mais que uma peça sem importância, um empecilho que atrapalhava a curiosidade. Elas queriam chegar perto, presenciar aquela luta ancestral, talvez perceber o instante preciso em que um corpo passa a ser apenas um corpo, nada mais.
Ele agora está só. Parado sobre a calçada, imóvel, apenas ouve. Tenta perceber os acontecimentos da única forma que lhe é viável. Em sua cabeça, cada voz ganha um rosto. Cada ruído, uma causa. Cada suspiro, uma alma. A cegueira enxerga a alma das coisas.
O filme é em preto e branco. A cena é trágica. No céu, brilha um enorme círculo branco, encharcado de calor e luz. No asfalto à frente um grupo crescente de pessoas que se acotovelam curiosas, jaz em murmúrios. No centro do grupo, um espaço vazio. Ali, vida e morte brigam entre si por um par de olhos que oscilam entre o abrir e o fechar. Ninguém se move. Ninguém ousa. A sede de tragédia camufla o fato de ali ao chão encontrar-se um ser quase vivo. Ou quase morto. Todos querem ver. Ver.
Ele se abaixa, rente ao chão. Os ouvidos captam verdades que aos olhos passam desapercebidas. Por entre o amontoado de pernas vemos dois olhos que brilham em choro. Sua cor azul é a única que se vê. A dor que expressam vai muito além da dor física, é espiritual. Que histórias se escondem, perdidas por trás do azul? Os olhos não vêem. Os ouvidos não ouvem. A alma, como sempre, sabe. É só com a alma que se sente de verdade.
Em meio a tantos ruídos diferentes, tantas vozes, falsos pesares, ele ouve o suspiro. Não precisa chegar perto, lutar ferozmente por um lugar na platéia para saber que o show já terminou. O preto e o branco reinam sós.
Põe-se em pé. Com a mão procura o poste onde, sabe, encontra-se o semáforo. O senso de direção lhe informa o caminho correto. Os ouvidos, a cor vermelha do farol. Atravessando a avenida ele pensa no azul. Que cor seria essa? Ele não sabe. Ele nunca a viu.