Sonhos Platônicos

sexta-feira, junho 16, 2006

Nuvens que Choram...


Agora...

O fim de tarde se aproxima. Trancada em seu quarto, assistindo o mundo pela janela aberta, ela pensa no que fazer, qual o próximo passo.

Algumas horas antes...

Sempre gostou de andar sozinha. Sentia-se melhor na companhia apenas de seus pensamentos. Os vinte minutos que a separavam de casa sempre foram os melhores do dia. Reservava esses momentos para encontrar-se consigo mesma, na ânsia por descobrir um pouco mais desse ser tão desconhecido. Hoje, como em todos os outros dias, caminhava tranqüila, sem pressa, imersa num oceano de divagações que envolviam toda sua vida e engoliam toda a sua atenção. Não percebeu, portanto, o estranho que se aproximava cambaleando, atravessando a rua à sua esquerda. Ainda, não seria absurdo afirmar que, quando deu pelo homem que já se encontrava à sua frente, sentiu como que um fio gelado lhe percorrer a espinha e a interrupção de pensamentos a deixou momentaneamente perdida, presa em algum lugar entre passado e presente. Foram apenas alguns segundos, mas as imagens que surgiram em sua mente eram lembranças a muito esquecidas. Ou não. Aquele cheiro...

Dez anos atrás...

A subida é interminável. Um a um ela sobe os degraus que parecem nunca ter fim e o medo a faz tropeçar inúmeras vezes. Lá embaixo as batidas na porta, os gritos da mãe, confundem seu raciocínio. Ela se divide entre a vontade de voltar para ficar com a mãe e a promessa de obedecê-la, independente das circunstâncias. Alheias à indecisão da mente, as pernas a empurram pra cima, em direção à porta do quarto que agora já pode ser vista.

Ela chega. Abre a porta e pára. Lá em baixo as batidas são interrompidas e o choro da mãe é tudo o que se ouve.

O silêncio...

... é quebrado pelo crescente ruído do vento que chacoalha as copas das árvores numa louca disputa de força. O céu escuro prenuncia chuva. Subitamente, raios riscam as nuvens com pincéis cor de luz e no horizonte trovões raivosos tremem o mundo. Sobre a cama perfeitamente arrumada uma alma atormentada treme. A tristeza renasce forte a cada segundo liquefazendo-se em lágrimas que inundam olhos e afogam o coração.

As lembranças... Vivem.

O homem segura seu braço esquerdo e dirige-se a ela com palavras confusas, arrastadas que ela, mesmo se totalmente presente, não entenderia. O cheiro conhecido invade suas narinas e o presente começa a se desvanecer, como numa fraca transmissão televisiva. Acordada, ela sonha e no sonho...

... a mãe chora e balbucia palavras que ela não entende. Em sua mente uma voz a aconselha a voltar, ela quer voltar, mas o medo paralisa seus músculos. O que fazer? Qual o próximo passo? Indecisão. Sempre a indecisão.

Seus pensamentos são interrompidos por um forte baque seco seguido de estalos e rangidos de quando a porta de frente é derrubada. Os gritos da mãe são agora gritos de horror e a grande carga de adrenalina inunda-lhe o sangue de amargo desespero. Sem dar um segundo aos pensamentos ela se volta, entra no quarto, fecha a porta e corre em direção à cama, procurando abrigo na escuridão que vive ali embaixo. Escondida, fecha os olhos para ver apenas a si mesma, mas os ouvidos, que não possuem essa qualidade, continuam ouvindo.

Gritos.

Pedidos de socorro.

Xingamentos.

Móveis que se quebram.

Corpos jogados ao chão.

Silêncio.

Passos na escada...

... e alguém bate à porta:

“Tudo bem aí dentro?”

Ela mente que sim e sua mãe a diz pra fechar a janela, pois a chuva começa a cair. Levantando-se, vai até o parapeito e pára. O prédio é alto e ao olhar pra baixo uma certa vertigem lhe enfraquece as pernas. Lá embaixo, o chão pintado de chuva se parece muito à saída de seu labirinto. Ela pensa...

... que não pode ser encontrada. Aqui embaixo, na escuridão, está segura.

A certeza fraqueja com o som da maçaneta sendo girada, os passos e a presença dentro do quarto, o cheiro de cujo temor não se livrará para o resto de sua vida, e cai por completo com a mão que a agarra e puxa para fora, para a luz. Para um mundo de traumas e...

... dor. Ela acorda. A mão em seu braço esquerdo aperta e machuca. Uma força estranha invade-lhe corpo e ela empurra o homem bêbado pra longe. Com satisfação ainda o vê cair no meio da rua, antes de se atirar numa corrida desenfreada pra casa. Um lugar escuro onde se sinta segura.

Chega ao prédio e o vazio do elevador a sufoca. O emaranhado de pensamentos e lembranças desnorteia seus sentidos e ela quase não percebe quando a caixa de metal pára. As portas se abrem e ela cambaleia pra fora. As mãos tremidas mal conseguem abrir a porta. Entra no quarto fechando a porta atrás de si sem perceber que passara pela mãe sem cumprimentá-la. Senta-se na cama e, finalmente, chora.

Sentada na cama ela assiste o mundo pela janela aberta. Certa vez, ainda criança, lembra-se de ter lido em um de seus livros infantis que “gotas de chuva são lágrimas que choram as nuvens”. Ela gosta de sentar-se à janela, sozinha, e observar a chuva cair. Ver pintada nas nuvens a cor de suas tristezas. Acompanhar cada gota que cai, em sua trajetória rumo ao Solo. Ver-lhe desintegrar o pranto e encharcar-se nele como um pai, um amigo. Alguém que se importa.

Hoje, livre da inocência infantil, ela inveja as nuvens por terem alguém em quem desfazer suas tristezas.



É essencial ter alguém pra desfazer nossas tristezas...

Abraços!!!