Sonhos Platônicos

sábado, novembro 18, 2006

Sete Horas...


O dia vai se despedindo no horizonte e por entre os prédios, a luz do sol se entrelaça, abraçando o concreto num terno gesto de adeus. O ônibus lotado disputa espaço entre veículos menores numa eterna luta em meio ao trânsito caótico de fim de tarde da grande cidade. Sozinho entre tantos passageiros encontra-se um certo senhor José, 70 anos de idade e uma vida inteira repleta de banalidades pelas costas.

Nesse momento, a única coisa com que se preocupa o senhor José, que não lhe sai da cabeça, é o horário. A bem da verdade, aos olhos de pessoas normais essa dita preocupação não passaria de uma frivolidade, uma tolice mesmo. No entanto, para o senhor José, tal preocupação se mostra como algo de suma importância, assim como por exemplo o é, para o toureiro, os olhos do touro conseguir fixar.

As sete horas se aproximam. O ar condicionado do ônibus funciona a plena carga, mas o excesso de pessoas aglomeradas, torna o ambiente irremediavelmente quente e abafado. A tensão pelo avançado da hora faz brotar, entretanto, pequenas gotas de um suor gelado na testa do senhor José. Ele cogita nervosamente que, se saltasse no próximo ponto e à pé fizesse o restante do caminho, provavelmente chegaria mais rápido em casa. Com esforço puxa a corda dando o sinal. O veículo pára e o senhor José salta, aterrissando desajeitado na calçada.

Excitado com a carga de adrenalina que agora corre por suas veias, o senhor José olha no relógio. 6:45. Quinze minutos. Rapidamente ele imagina as melhores opções. Um enorme mapa preto e branco com opções destacadas em amarelo e um grande X vermelho apontando o local do tesouro aparece em sua mente. Milhões de cálculos rápidos são feitos e o resultado se mostra claro. Sem se demorar mais, o senhor José sai caminhando em passo acelerado, rua acima.

A avenida principal encontra-se congestionada por um mundo de carros e pessoas. Os corpos passam chocando-se uns contra os outros num ritmo ao mesmo tempo frenético e ritmado. A cidade pulsa como o peito de um grande mostro inanimado que dorme com a chegada das estrelas. O senhor José quer sair dali. Quer sair daquele mundo. Os ponteiros do relógio não param e tudo o que ele deseja é chegar em casa, entrar no único mundo que lhe pertence e livrar-se da solidão dessas ruas cheias de gente.

Algumas esquinas e avenidas depois, o senhor José finalmente chega à sua rua. Nesse momento ele já começa a sentir-se mais em casa. Lá no fim da rua, à direita, num ponto escuro onde à muito existia uma lâmpada em um poste, está o seu objetivo: O grande X vermelho. Ele olha no relógio. 6:55. Vai dar tempo. Pode até mesmo andar um pouco mais devagar. Não muito.

Andando agora com mais calma o senhor José observa as casas ao redor. Nessa vive uma família inteira: Pai, mãe e três filhos pequenos, de dois, quatro e nove anos. São três crianças lindas, mas ele não gosta de crianças, nunca gostou. O senhor José nunca teve filhos.

Mais à frente mora um casal. Dois velhinhos com idades parecidas com a sua. Mesmo nunca tendo se casado, o senhor José não entende como um homem e uma mulher podem viver juntos por tanto tempo. Ele não entende os relacionamentos. Por toda a vida preferiu se privar de tais incertezas em nome da segurança, do equilíbrio. O senhor José acredita piamente que relacionamentos só trazem dor e desilusão.

Apesar do horário, pode-se ouvir os ruídos das televisões ligadas, das conversas dos casais, dos pais, dos filhos, dos abraços, dos beijos, sorrisos. Famílias reunidas. Luzes. Cores.

O grande X vermelho é uma casa pequena, antiga, envolta em escuridão. O senhor José abre a porta, apressado. Olha no relógio: 7:00. É tempo. As luzes apagadas e o silêncio total o evolvem, espessos. Ele caminha em direção a sala e acende a luz. Olha em volta. Equilíbrio. Segurança. Seu grande sonho de consumo. São sete horas e um minuto e o senhor José senta-se na poltrona ansioso, tira os sapatos, alcança o controle remoto e liga a televisão. O jornal da noite vai começar.