Sonhos Platônicos

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Buscar sempre...


Ele só queria um pouco de silêncio, mas a música, a batida, inunda-lhe os ouvidos embaralhando pensamentos com as mãos, como pedras de dominó. Ele fita a imagem no espelho à sua frente e esta não lhe transmite qualquer familiaridade. Os olhos embaçados de lágrimas confundem os contornos das coisas, misturando personagens, cenários e histórias.

Mãos sobre a pia, ele fecha os olhos, cabeça baixa. No escuro vê a si mesmo criança, correndo na praia sozinho, brincando na água enquanto o pai conversa com uma mulher estranha. A cena é antiga e ele lembra-se de pensar que iria ganhar um sorvete. Uma raiva súbita e violenta dirigida àquele menino e à sua infinita ingenuidade, enche-lhe o peito. Os olhos se abrem. No espelho à frente, ainda a neblina. Ele leva as mãos aos olhos, secando a vergonha num ímpeto nervoso. Alguém vem entrando no banheiro e imediatamente ele sai.

O som agora é insuportável e ele procura, em meio à multidão de corpos que dançam, sorriem, conversam, se beijam, se tocam, tornando-se algo como um único ser de mil cabeças, milhões de pensamentos, a mesa onde sentam-se seus amigos. No fundo do ambiente ele os encontra. Reconhecimento. Aos tropeços, ele caminha até o grupo.

Ele agora está sentado à mesa. À sua volta as pessoas conversam e gargalham alto. Ele permanece em silêncio. Nunca dominara ao certo a arte de misturar-se com as pessoas, ser como elas. Sempre fora diferente e, assim, a dor de ver-se só, saber-se só, massacrava-lhe o peito. Na mesa, um copo cheio do líquido catalisador de toda aquela alegria, a solução, o ponto de fuga de toda a sua solidão, brilha convidativo. Como poderia sentir-se só em meio a tantas pessoas? Como poderia haver tristeza em meio a tanta alegria? Ele não quer mais ser diferente.

Estendendo a mão ele segura o copo. Enquanto leva-o à boca, a imagem da manhã que saíra de casa, a porta batendo às suas costas e pai gritando palavras sem sentido à mesa do café vem-lhe subitamente à cabeça. Ele tenta lembrar-se da última vez que pudera conversar com o pai sem que esse estivesse fora de si, mas não consegue. Na verdade ele não sabe mais o pai que tem, não reconhece aquela pessoa. Saudades de quem se foi para sempre. O líquido gelado desse amargo, esfriando a dor antiga que queimava-lhe o coração, sufocante.

Ele perde a noção do tempo, espaço. As doses que se sucedem o convencem piamente que está bem, que nunca estivera melhor. Por algumas horas esquece-se do significado da palavra solidão. Ele olha em volta e reconhece sua família, aquela que nunca teve realmente. Essa é a realidade para qual havia nascido, que lhe tiraram quando ainda criança.

A lua vai alta no céu e a madrugada dança nos ponteiros do relógio quando finalmente eles saem do bar. Ele agora é outra pessoa: O grande dono do mundo, da verdade, da vida. Da sua vida. Olha para o céu desafiando as estrelas, gritando a plenos pulmões medos que não existem mais.

Ele pega a chave do carro, alguém pergunta:

- Cara, você tem certeza que tá bem pra dirigir? Acho melhor eu levar o carro...

A resposta é rápida, óbvia, honesta:

- Não! Eu tô bem, larga mão! Nunca me senti melhor!!!