Sonhos Platônicos

sexta-feira, março 10, 2006

O menino do doce...

Leiam com carinho...

O galo cantou em algum lugar lá fora, mas seu canto encontrou-o acordado na velha espuma onde dormia. Gostava de acordar mais cedo que o despertador. Era como se ele, o despertador, fosse pego no meio de uma travessura. Levantou-se e foi ao banheiro do lado de fora do casebre fazer sua higiene, que consistia em escovar os dentes numa escova velha roubada do lixo de alguém, urinar e lavar o rosto na água fria da torneira “pra despertar”, não que dormiria de novo se voltasse para cama, nem que quisesse conseguiria, era apenas um hábito adquirido a muito tempo.
Entrando de volta em casa foi até a geladeira, que a anos não gelava mais nada, buscar algo pra comer. Esse era, aliás um outro hábito adquirido a muito tempo: sabia que nada iria encontrar, mas mesmo assim nunca desistia. “A esperança”, diria ele, “morre sim, mas não ainda”. Confirmado o que já sabia, pegou o uniforme do dia-a-dia (calça velha, chinelo velho, camiseta velha e uma porção de velhas esperanças escondidas bem no fundo do armário carcomido por cupins de desilusão), vestiu-se e saiu.
Tinha apenas 13 anos, e não ia para a escola. Estudara apenas até a terceira série, não entendia as letras nem os números, achava-se burro. Certo dia teve suas suspeitas confirmadas pela boca da própria professora, que tentando explicar-lhe o segredo por trás dos símbolos que segundo ela continham a palavra PATO, perdeu a paciência e, aos berros, condenou-lhe à sina da ignorância eterna. Não se entristeceu por isso. Na verdade não entendia a utilidade de se desenhar patos, gatos e ratos naqueles horríveis símbolos preto-e-branco que só faziam roubar a cor e a alma de tudo o que representavam. Resolveu que tinha coisas muito melhores para fazer além de ir àquele lugar onde seu tempo lhe era roubado.
Passava seus dias pelas ruas da grande cidade com crianças de várias idades que, como ele, decidiram procurar nos faróis e estacionamentos o sustento que não tinham em casa e a educação que não encontravam na escola. Esperava encontrar em algum desses faróis um pouco de luz que trouxesse a esperança de uma vida diferente onde letras e números fizessem sentido, onde deixaria de ser quem era para tornar-se alguém que tivesse importância. Cansara-se de ser só mais um dentro de casa e também fora dela. Tudo o que recebia no entanto era vidros, caras e portas fechadas.
Hoje era mais um dia desses em que o futuro parece correr rápido demais na nossa frente, numa velocidade que não conseguimos alcançar jamais. Saíra de casa de manhã bem cedo procurando algo para comer e até então nenhuma boa oportunidade lhe sorrira. Tudo o que conseguira foram algumas moedas que, numa padaria, só serviram para aumentar ainda mais a fome que sentia. Resolveu então que iria terminar o dia guardando carros nas ruas ao redor de um Shopping próximo.
O ser humano tem uma propensão incrível para o egoísmo e o preconceito. Andamos pelas ruas como se num castelo de espelhos onde tudo o que vemos é nós mesmos, tratando as outras pessoas como componentes de um cenário criado especialmente para nos satisfazer. Se algo não nos agrada, principalmente no que diz respeito à aparência, nosso preconceito encarrega-se de ignorar por completo esse componente.
Era assim que se sentia na maior parte do tempo: Um componente defeituoso no cenário da sociedade como um todo e que, como tal, era ignorado e deixado de lado.
Sentado na calçada enquanto outras crianças brincavam e conversavam à sua volta, pensava em como a muito tempo não recebia o sorriso gentil de alguém, quando viu subir a rua vinda do Shopping uma mulher. Absorta em seus pensamentos, trazendo na mão um sorvete recém comprado, quase não o viu ao passar por ele. Seu carro estava estacionado numa vaga próxima e enquanto ela abria a porta, o menino se aproximou:
“Tia, tem um dinheiro aí?”
Ela, meio assustada respondeu rapidamente, a velha ladainha:
“Nossa, não tenho não. Que pena...”
Não esperava mesmo por uma resposta diferente. Tentava se acostumar ao não, para que o sim tivesse um sabor ainda melhor. No entanto, algo estava diferente. Essa moça parecia que realmente sentia o fato de não ter dinheiro para lhe dar. Ela não era como as outras pessoas para quem costumava pedir. Viu em seus olhos uma preocupação e um amor com os quais não estava acostumado e isso o deixou sem reação. Sem saber porque, pediu:
“Me dá um sorvete?”
Um sorriso nasceu no rosto da mulher. Um sorriso de alguém que decide fazer o bem.
“Claro! Toma! É seu..”
Ela lhe estende o sorvete que acabara de comprar. Ele não consegue reprimir o sorriso e agradece com satisfação. Era bom sentir que pelo menos naquele momento alguém se importava com ele. Sorvete algum jamais teria o mesmo sabor que aquele. Se despediram e a mulher entrou no carro com uma expressão de quem tinha feito o que podia para ajudar.
Ele sentiu-se feliz e chamando as outras crianças que por ali brincavam, dividiu o presente que acabara de receber. Sentiu a necessidade de passar para frente aquele ato de generosidade. Daquela mulher e do preconceito e egoísmo que não viu em seus olhos, com certeza jamais se esqueceria.
Foi para casa pensando que o mundo pode ser diferente, melhor e que o futuro talvez não fosse assim tão ruim.
Imaginou que letras formariam a palavra “obrigado”.


“O importante não é fazer-mos muito, é fazer-mos o que podemos.”

Abraços!!!