Sonhos Platônicos

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

O Silêncio da Vida


Era Londres quando tocou do céu um estrondoso barulho que mostra com o som, a luta entre nuvens agoniadas. A luz que o grande espetáculo transmitia fazia brilhar os tijolos velhos da grande mansão que se encontrava em alguma parte oculta da cidade. Acabara de chover e o chão ensopado ainda resistia às penosas ações do tempo e das pessoas. Na grande casa morava um velho milionário e cheio de vida vivida e vida pequena. Logo deixaria de existir; aliás, tão logo que sua ambiciosa filha e única herdeira, já que a mãe morrera de desgosto, cedo havia tratado de preparar ela mesma um lugar num cemitério graciosamente morto. Tão lindo com as flores diversas, árvores ricas e gramado perfeito, mas tão rude pelas almas e corpos frívolos e oscilantes que ali apodreciam sem mesmo alguma honra do que algum dia já foram.
Esta jovem álgida então, forjou o assassínio de seu próprio pai, em companhia de seu noivo de grande carnificina e pouco, ou melhor, nenhum fervor pela vida, mas sim pela morte. Pretendiam estes, casar-se e viverem suas vidas ativamente e com glamour na intensa Paris. O que não sabia a moça, era que seu merecido noivo, também pretendia matá-la quando todo o dinheiro pertencesse ao seu bolso.
Então o plano foi extremamente abusivo: ela pediria para seu pai descer até o porão, lá, ele seria morto pelo pescoço quebrado dando indícios de que caíra da escada. Sua filha falaria para as duas empregadas que sairia para uma visita a uma amiga, mas voltaria sem dificuldades, pois era dia de compras, e, cometeria o assassinato, deixando o corpo exposto. Depois entraria num esconderijo, pois as mulheres retornam em minutos, as compras sempre já estão feitas, basta pegarem no quarteirão vizinho. O noivo chegaria à mansão após as empregadas e, ao andar pelos corredores da mesma, chamaria as mesmas para verem o por que a porta do porão estava aberta. Eles descobririam o corpo, enganando as duas mulheres ingênuas e a polícia. Depois da retirada do corpo e do balburdio finalizado, o noivo da herdeira desceria ao porão e retiraria a mesma de lá; escondida, sairia ela da casa e voltaria dizendo não saber de nada, em prantos, a morrer…
Tudo pronto para o dia final do pobre e maldoso também, porém agora enfraquecido pelas doenças, velho.
- Meu bem, pela noite de amanhã estaremos ricos. – disse feliz a moça loira.
- Assim rezo. Seu velho moribundo; sua tristeza de hoje será sua alegria de amanhã. Nunca pensei numa morte tão esperada e sorridente como esta. – disse gargalhando baixo o rapaz.
Naquela noite, foi a filha do homem ao seu quarto.
- Pai, pode ir ao porão pela manhã? Desejo lhe mostrar algumas das lembranças antigas de nós dois. E já que é muita coisa, preferiria que o senhor fosse até lá, sim? Ora, não é muito esforço, lhe ajudarei, prometo. – falou falsa ao pai.
- Eu vou como último esforço a você minha querida filha, já que nunca mais conseguirei fazer nada mais por você. – disse meigamente o velho.
- Por Deus, não diga uma coisa dessas. Não seja tolo. Viverá muito porque quero que viva. Viverá até mais do que eu mesma. – e a farsa estava pronta a ser vendada. E já que ninguém nunca saberia se sairia ela ou não, já que o seu pai não mantinha bom relacionamento com as empregadas, ela tranqüilizou e teve uma ótima noite, pensando no futuro e na cobiça.
Pela manhã, a jovem se arrumou após o desjejum e saiu pela porta anunciando às empregadas que iria sair e só pretendia voltar pela noite. Logo, as duas mulheres saíram e ela voltou. Subiu ao quarto do velho e o ajudou a descer. Andaram pela casa e chegaram ao fim. A filha traiçoeira, não por matar a pessoa que era ele, pois tinha má índole, mas por matar o próprio pai, que apesar de tudo, nunca deixou que algo faltasse a ela, abriu a porta. Depois da porta aberta e quando a moça percebeu o que iria fazer, acovardou e viu que não conseguiria apunhalar o velho na cabeça ou mesmo lhe quebrar o pescoço. E tão desesperadamente decidiu o empurrar da escada e, se ele não morresse, o mataria, pois não haveria mais o que fazer, não poderia acovardar novamente. E o fez: jogou o velho do topo das altas escadarias; ele, ou seu corpo fez um malabarismo ofegante quando passava por cada degrau de duro concreto e morte infelizmente segura e diretamente ágil. Quando ela desceu, aliviou-se ao ver que estava ele morto. A filha do inexistente, a partir de agora, já ouvia as altas conversas das empregadas chegando.
Rapidamente ela abriu uma porta sobre o chão, que era um esconderijo que ninguém poderia achar, era muito bem escondido e de fácil acesso para quem soubesse de sua existência. Ele fora construído anos antes para a segurança da família, quando a Primeira Guerra ocorreu; estava inativo e inutilizado há quase uma década. Mas era totalmente seguro, só abria por fora (o que era o único grande defeito, pois antes abrira por dentro, lógico, mas depois de anos sem uso foi-lhe trocada a fechadura) e ninguém podia ouvir nada, estando dentro ou fora dele. E dentro, ela já havia colocado comida para que não passasse fome; havia um corredor minúsculo e apertado e depois, numa curva, uma saleta escura e fria, parecia assombrada.
Após alguns minutos dentro do esconderijo, ainda na porta, não entrando à salinha, ela pôde ouvir um gemido ao longe. Quase lhe veio a morte com o medo; e então, ela reconheceu quando ele falou, que era seu noivo tão infeliz.
Ela deixou escapar um grito tão horrendo que não entoou pelos céus a fora porque não pôde, assustou aos anjos e maus espíritos também; foi tão terrível quanto a morte em um dia chuvoso. Uma empregada ouvira a conversa da noite passada e contou ao patrão, porém lhe faltou coragem para dizer que a filha também se envolvera, então ocultou. O velho assim chamou alguns homens e mandou que prendessem para sempre o noivo de sua filha no esconderijo do porão e que o assunto fosse esquecido.
Foi ainda na capital inglesa, onde soavam dos céus clarões numa tarde chuvosa e tão triste; num chão ensopado pela água das nuvens e sangue dos homens, dos estrondos, e da úmida terra, não pela chuva, mas pelas lágrimas de alguém esquecido que se perdera em seus próprios sonhos que o sufocavam tão vagarosamente pela noite adentro.

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Hora Certa...


- Eu acho que é uma característica bem minha mesmo, esse negócio de perder as esperanças... – Ela disse, fitando o céu nublado sobre suas cabeças.

- Mas porque você pensa isso?

Ele tentava encontrar naquele olhar algo que lhe transmitisse mais do que simples desencanto. Ela continuava a fitar o céu, como se não tivesse percebido a pergunta. Ele sentiu uma certa exasperação frente a tal descaso, mas com um pouco de esforço conseguiu conter-se: Já acostumara-se com aquele ar distante que ela assumia quando estavam sós. Abaixou a cabeça e esperou, mirando uma fila de formigas que andavam ordenadas pelo chão. Quis ter alguém consigo.

- Não sei... – Ela finalmente respondeu – às vezes eu penso que tenho certa propensão a perder as esperanças nas coisas, nas pessoas. Nos relacionamentos. Não é nada com você, é comigo. Eu sou o problema.

Levantando os olhos percebeu que ela o observava. Em seus olhos não conseguiu ler absolutamente nada: Eram olhos de vidro. Ele sorriu. Ela perguntou:

- Você está rindo do que?

Subitamente toda a situação adquiriu para ele um humor inacreditável. Desatou numa gargalhada incontrolável que a deixou com um semblante assustado. Ele pensou em tantas coisas que poderia dizer nesse momento e agora nada de realmente interessante lhe vinha à mente. Só conseguia mesmo achar tudo aquilo muito engraçado. Ela voltou a olhar para o céu, pensativa.

- Eu acho que vai chover.

Ele tentava se recompor, enxugando o rosto. Olhou para o céu franzindo o cenho.

- É verdade.

Ela o olhou. Os olhos negros vasculharam cada centímetro de sua alma. Ele sentiu aquele olhar como se um holofote fosse colocado em sua direção. Seu calor percorria-lhe o corpo. Sentiu de repente que era hora. A hora certa.

Perdeu-se por completo de qualquer sentimento de orgulho e desnudou-se por completo. Aprisionou-lhe os olhos nos seus e disse-lhe, sem pronunciar palavra, aquilo que ela precisava (merecia?) ouvir. Resgatou a flor que no chão se encontrava trazendo-a de novo à lapela. A montanha sobre seus ombros jazia destroçada.

Mais forte que ele, sempre o fora, ela desviou o olhar. Olhava para o chão e ele soube que naquele peito algo ainda se movia. Pensou em dizer algo, mas a hora certa, assim como viera, fora-se. Talvez para sempre. Pôs-se de pé e, dando-lhe as costas, deixou-a sem olhar para trás.

Dos olhos baixos algo escapou para o chão.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Os Reinos do Jardins Mortos


E pela entrada do jardim via-se um terror que faria as veias explodirem; dum temor mais forte e obscuro como o medo em um dia de morte. As trevas envolviam cada objeto, folha, a superfície da terra, o tampo do céu, a casca das árvores e as flores como as das orquídeas envenenadas que nunca mais nascerão eternamente. Oh! As trepadeiras nascem para sufocar. Oh! As orquídeas; sim; nunca mais nascerão.
Da bela entrada que algum dia foi, para um jardim tentando respirar dentre suas próprias câmaras funestas. Em cima da porta, uma coroa anunciando a morte precedente para uma alma fraca e um espírito num corredor escuro. Horríveis são os sussurros e ruídos e gritos sufocantes calibrados de uma ornamentação travada e forjada pelos santos demônios que se contorcem dentre as várzeas folhais de espanto e preces não ouvidas. São eles rústicos e astutamente vibrantes, quebrando o espelho da Mãe que ali já não é mais. Vê-se, pelas grandes raízes das imensas árvores que crescem desgovernadas como nunca, o sangue escorrendo pelo seu corpo lenhoso lentamente e indo ao encontro da Grande Terra que se alimentará então desta seiva, deste ferimento do mundo. As raízes saltam com furor e no caminho que fazem, todos tropeçam e caem e são engolidos como algo no mar; assim é a terra estranguladora de suas vítimas. Oh, nunca mais irão nascer as orquídeas do tempo.
A história vem sendo escondida por páginas de histórias, muito dita por aqueles que não mais nascem a cada dia; estas páginas de meu diário. Tecendo o dia no nunca nesta luxúria impecável de mentiras que nunca escrevi. O dia se foi, a luz decaiu, o ar se perdeu. Oh! O dia caiu em trevas. Trepadeiras nascem para sufocar. Oh! As orquídeas se foram. Perdem-se em minha própria terra, agora se entende porque ele morreu. Sim. Um senhor para o medo. O meu Sol mora aqui, nunca mais ele aparecerá e o tempo dirá o sinal que virá.
Sapos que coaxam e pássaros da Morte que produzem em suas bocas mortais o falar repetitivo das Trevas. Onde nelas, o vácuo do Universo descansa após àqueles incompreensíveis odiados que pelos jardins passaram rapidamente e deles, fizeram-se todos os infinitos rancores de pavor e pequenez dos grandes Senhores do Mundo. Estes insolentes… Deixaram assim estas gramas antes brilhosas; estes arbustos antes deuses, agora coitados; essas vidas, agora somente morte. O que sobra da terra é aquilo que nunca mais nascerá. O que sobrou disso, é aquilo que nunca mais se entenderá. Mas assim ai de ser por enquanto viverem as malícias e, aqueles hipócritas, por bem, já passaram por lá ágil e não mais retornarão porque se sabe que o que estes merecem, o mundo não merece e nem a eles também. Eles mataram e não se arrependeram e assim com as orquídeas que, oh! Nunca mais nascerão.
No meio do Sol, do centro de tudo; uma jarra grande de barro que cospe água grandemente em seu interior. Uma nascente de um mundo, de uma terra assim. Dela, quebrada agora, formam rios de sangue que envenenados correm para dar vida aos infames infantes. Dar a luz negra para as árvores obscuras. Garantir o fumo azul em negro dos demônios assustados com eles. Chamar a vitalidade de ódio para que aqui prevaleça e ande e morra. Pois nem isso aqui vive eternamente. Nem isso aqui quer viver só agora. Donde canta, só dorme e faz gritar de medo por vezes e sempre. De aqui e aqui e para aqui, nada mais. Do grande vale dessa jarra; isso, fonte; desse chafariz eterno que sempre verterá por seus olhos ensangüentados e vermelhos a água da água dessa água. Agora hão ao de tudo saber, de tudo de crescer e aqueles, destruir. É desta água das trepadeiras mortas e vivas debeladas; é desta água das lindas e líricas orquídeas que já exalam malmente odores de sangue e, apodrecem sem amor em seus corações sufocados pelo medo de viver e o apuro de ser.
Nos cantos de cada canto um dia se esconde, um laço se esconde, uma tortura se esconde, uma tormenta se aguarda. Um dia para o sempre, um laço para os iguais, uma imagem para sempre, do caminho tortuoso do destino. Do guardar de uma lembrança escondida dos jardins e que no mal prevaleça. Dum tenebroso terrível que ternamente assusta, da alma de um santo que livremente correrá nas tristes gramas cinzas de um mundo negro.

Eu sei

Após várias tentativas loucas de escrever um texto qualquer, aqui está ele. O único que sobreviveu a não ser rasgado e jogado ao cesto de coisas desnecessárias de suas próprias vidas úteis. Me acho um doido sem serenidade no viver, por isso que acho que poeta se faz de rua, e não somente de pensar. Sabe quando se diz algo em seu coração e esse dizer não sai da ponta do lápis? O papel rejeita ser sujado de poucas, mas imunes palavras vomitadas de alguém que parece ser cúmplice dum assassinato tão terreno que se sujeita na mais bondosa prece. Não entendes o que digo? "Viver ultrapassa todo entendimento".
Somos todos poetas, mas o papel se rejeita para muitos de nós. Se não seria eu um grande homem de palavras.
Caro leitor, não se magoe com meu falto de entretenimento. É que o Brasil está sujo, nossa vida se perdeu, nosso amor se elevou tanto que fugiu por ser mesquinho. Nosso saber está noutro mundo. Ainda pegarei o jeito novamente. Mas enquanto isto não ocorre, me nego a fazer.
Paro aqui e protesto, pois não é falta de criatividade caro leitor, se você não entendeu, e não se sinta ofendido, mas você não está apto a me acompanhar com clareza e rapidez de um bom ouvinte. Não há cousa que explique isto. Apenas viva que você saberá.

EU TAMBÉM PROTESTO
Após longa data sem surgir por este lugar incomum para nós eis que retorno para uma ou outra caso permitam que assim seja.

domingo, fevereiro 18, 2007

Dormir, sonhar, pensar.


No jardim o botão se abre repentinamente. A flor nasce bela, destacando-se no meio da noite e seu perfume alcança as estrelas. A morte virá ao nascer do Sol e, da mesma forma que veio, a flor desaparecerá: Um labirinto de esquecimento do qual só voltará a encontrar a saída num tempo pré-determinado somente a ela pertencente. O quando é para sempre imprevisível, indeterminado.

Dentro da casa o gato dorme tranqüilo, quando um ruído na janela o desperta dos seus sonhos: Olhos verdes brilham na escuridão da sala. Ele espera. Parado escuta o silêncio ao redor. O feixe de luz da Lua que entra pela janela incide sobre o sofá, exatamente no local onde ele se encontra. Irritado, levanta-se e muda de lugar, refugiando seu sono na escuridão total. O gato sonha.

A cama é desconfortável. O velho senhor tenta encontrar uma posição que lhe guarde da agonia. O sono confunde-lhe os pensamentos e ele mal percebe o edredom que se arrasta pelo chão. Antes de embarcar de vez rumo ao vale dos sonhos, ele pensa, da mesma forma que o faz noite após noite, que amanhã deverá procurar um novo colchão. O velho senhor, sem perceber, dorme tranqüilo.

Sentado na escrivaninha o homem pensa. Tenta encontrar uma saída para o enigma que persiste em atormentar o seu sono. O cursor pisca esperando ansioso para preencher a tela em branco à frente de palavras que não vêm. Ele pensa que nunca mais será capaz de escrever uma única linha interessante e sente um misto de tristeza e desespero por isso. Não sabe o que será da sua vida sem a escrita. Os olhos vidrados na tela, o homem pára. Ele pensa.

Ninguém percebe: O gato sonha, o senhor dorme, o homem pensa. Lá fora a noite passa. A flor exala seu perfume que se espalha pelo jardim, iluminado pela luz do luar. Ela luta, em vão, contra a passagem do tempo, contra a manhã que se aproxima. A verdadeira beleza nunca é eterna e as batalhas mais importantes passam sempre despercebidas.

Dormir, sonhar, pensar.

É preciso enxergar.


Ontem, dia 17/02 fez-se um ano desde o primeiro post desse Blog. Fico muito feliz em perceber que um ano depois ainda temos muito o que falar, o que escrever. Agradeço àqueles que nos visitaram e que continuam nos visitando. É muito bom saber que alguém ainda nos enxerga de verdade.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Grande Dia...


Abriu os olhos e pensou:

“Hoje é o grande dia!”

Levantou-se da cama bem disposto. Não se lembrava da última vez em que acordara tão bem. Foi ao banheiro e, para a figura que olhou-o de volta do espelho disse, empolgado:

- Hoje é o grande dia!

Tomou banho e barbeou-se como se estivesse se preparando para uma grande festa. A loção pós barba nem ao menos fez-lhe cócegas. Sentia o coração bater no peito, na ponta dos dedos das mãos, dos pés, no cotovelo, joelho. O corpo inteiro pulsava num ritmo cadenciado, rápido, apressado. A adrenalina que lhe percorria as veias fazia-o sentir-se grande, completo, invencível.

No quarto, vestiu a melhor roupa de trabalho que tinha, reservada para uso apenas em reuniões importantes, com clientes importantes. Terno: calça e paletó pretos risca de giz, camisa branca e gravata lilás, listrada. Calçou o sapato preto e abriu a gaveta de perfumes. Escolheu o melhor e mais caro: Francês, trezentos reais o vidro médio, cem mililitros. Uma borrifada no pescoço, uma no pulso e uma no corpo. Não queria exagerar.

Já na cozinha, esquentou o café rapidamente e bebeu de um gole. Correu para a sala, pegou a pasta, a chave do carro e dirigiu-se para a porta. A chave no trinco, parou. A cabeça deu a volta pela casa procurando algo que possivelmente havia sido esquecido. Voltou à cozinha e pegou um chiclete: Para o hálito. Abriu a porta e dirigiu-se ao elevador. Segundo subsolo, garagem. Entrou no carro, deu partida e saiu.

Na rua, o trânsito o irritava além do normal. Queria chegar logo, não podia perder a hora. Olhava constantemente para o relógio no pulso, uma peça antiga, que pertencera a seu avô e que há alguns anos fora-lhe dada pelo pai como presente de formatura, quando terminara a faculdade de engenharia. Lembrou-se do ar de dúvida do pai quando lhe dera o presente, meio que não sabendo ao certo se lhe era merecido.

O rádio do carro tocava um rock’n roll contagiante quando entrou no estacionamento do edifício onde trabalhava. Parou o carro na vaga de costume e esperou. Olhou em volta e não encontrou o que procurava. Suspirou aliviado: Estava adiantado. Nos minutos que se seguiram, seus pensamentos viajaram por uma infinidade de possibilidades, tentando formular na cabeça as cenas que, esperava, aconteceriam a seguir. Imaginava a coisa toda de mil formas diferentes e seu eterno otimismo teimava em pintar cada uma delas de cores invariavelmente impossíveis.

A ansiedade estava a ponto de tornar-se em desespero quando tudo começa a acontecer: O Palio prata, ano 2004 modelo 2005, quatro portas e motor total flex, entra lentamente pelo portão mecânico da garagem. O frio na barriga é tão intenso que lhe parece congelar a alma.

O carro pára.

Ele desliga o som e abre a porta.

Alguns segundos e a motorista do Palio sai do veículo. Terninho preto, camisa branca, o cabelo amarrado atrás, formando um rabo de cavalo, óculos de armação grossa, preta, pasta na mão.

Ele caminha lentamente até o elevador e aperta o botão.

Ela demora um pouco. Alguns segundos, uma eternidade. Seu perfume a precede. Um francês: Trezentos reais o vidro de cem mililitros.

- Bom dia!

- Bom dia!

O elevador chega e os passageiros embarcam. Ela aperta o doze. Ele o dezessete.

Dez segundos. Um mundo de possibilidades.

- ...

- ...

A caixa de metal pára.

- Tchau!

- Tchau...

Um grande dia.