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Sentou-se à escrivaninha, lápis preto na mão e a intenção clara e decidida na cabeça de escrever-lhe tudo o que sentia. Há muito tempo adiava esse momento com medo de não saber o que escrever ou como escrever. Temia que o papel branco à sua frente engolisse sua vontade de se expressar, de se desnudar em palavras àquela que lhe atormentava os pensamentos. Tinha a plena certeza de que não conseguiria passar das primeiras letras simplesmente porque, sabia, nunca tivera intimidade com elas.
Não se envergonhava disso, pelo contrário: Desde que conhecera os números e descobrira com deslumbre os segredos da matemática, nenhuma outra forma de expressão jamais lhe interessou. Via neles a magia que lhe faltava à vida, sua simplicidade lógica e sempre coerente mostrava-lhe o sentido que jamais encontrara nas palavras. Aliás, por essas últimas sempre dedicara especial desprezo. Não entendia e preferia não confiar em uma linguagem que a seu ver era um convite à falsidade em duplos e triplos sentidos, que dizia ser o que não se era e que sempre era o que nunca se dizia. Às letras dedicava o papel de coadjuvantes em suas equações.
Passara então a adotar os números como principal linguagem de comunicação, expressando-se em palavras o mínimo possível. Assumiu vícios matemáticos de linguagem, desenhando expressões capazes de responder às mais variadas indagações e necessidades. Sabia e pouco lhe importava a opinião dos conhecidos, que acreditavam ter ele perdido o juízo. Jamais dava ouvido às provocações e nunca prestou atenção nos dedos que lhe apontavam na rua, tachando-o de louco intransigente. Não dava o braço a torcer: Queria mostrar ao mundo que a beleza escondida por trás dos 10 algarismos numéricos, superava em muito a abstrações representadas pelas 23 letras do alfabeto que, mesmo com 13 símbolos a mais, jamais desvendariam com tanta propriedade e simplicidade as verdades universais que os primeiros desvendavam.
Passava horas sozinho no quarto de estudos deduzindo equações que, segundo seus cálculos, contavam com precisão assombrosa o número de estrelas no céu, mediam o volume de água de todos os oceanos e ofereciam explicações matemáticas para todos os fenômenos naturais que assolavam o mundo, dando-lhe ainda a capacidade de adivinhar a data em que ocorreriam e o número de mortos e feridos dos piores acidentes aéreos, marítimos e terrestres da história. Além disso, gabava-se por poder prever em números, quantas vezes é preciso se apaixonar antes de se encontrar a pessoa certa e, quando isso acontecer, a quantidade de calorias perdidas no esforço de mantê-la junto a si.
A crença irracional no poder quase que sobrenatural das equações foi fatalmente abalada quando, contrariando as mais otimistas previsões, a pessoa certa, àquela por quem agora enfrentava o doloroso desafio das palavras, bateu sem avisar à sua porta, procurando por aulas particulares de matemática. Não houve amor à primeira vista, tal coisa, é sabido, não existe. O que houve foi uma identificação à primeira vista. Uma certeza inexplicável de que ali parada à sua frente encontrava-lhe a desgraça e a redenção da vida.
Foram meses de provações e sacrifícios. Ela precisava de ajuda nas provas finais e o cálculo era sua maior dificuldade. Ele a ensinava com paciência, mas o desejo desesperado de alongar ao máximo a duração das aulas, na esperança infantil de tê-la mais perto, confundia em si a vontade de ajudar, dificultando nela o aprendizado daquilo que, a seu ver, reunia em 10 símbolos tudo que de mais indecifrável existia no universo.
Nele crescia a cada dia o desejo intenso de declarar-se apaixonado. Ao mesmo tempo, no entanto, fechava-se ainda mais dentro de sua própria existência, numa tentativa desesperada de traduzir em equações a enorme bola de fogo que queimava em seu coração. O músculo vivo dentro do peito clamava-lhe respostas que não tinha e não conseguia encontrar, e na ponta do lápis o resultado impossível retornado era sempre o mesmo: 2.
Vendo o tempo escorrer por entre seus dedos como grãos de areia de um deserto que deixava de ser infinito, desistiu de esperar que o entendimento que se resignava em encontrar-lhe os pensamentos desvendasse em luz o mistério e, desvencilhando-se das garras de um orgulho já muito ferido, sentou-se à escrivaninha, lápis preto na mão e a intenção clara e decidida na cabeça de escrever-lhe tudo o que sentia.
As palavras são bestas selvagens e o escritor, caçador incansável, domador valente. Não sabendo por onde começar, viu à frente o fim do caminho que se abria. O lápis preto toca o papel em branco e a batalha começa...
Abraços!!!